No caso de erro médico ou espiritual, como deveria ser enquadrada na legislação uma operação espiritual como as que vem realizando o dr. Fritz, incorporado no médium-médico Edson de Queiroz? A dúvida, e todas as suas implicações, tanto a nível de crença religiosa como de fato passível de punição legal, é levantada pelo promotor público e parapsicólogo Walter Rosa Borges, nesta entrevista exclusiva:
– Existe a cura paranormal ou cura milagrosa? Em caso afirmativo, em que consiste?
– A cura paranormal ou cura milagrosa é um fato exaustivamente comprovado. Em alguns casos, depende da fé do enfermo, em outros não. Sob o ponto de vista meramente operacional, ignora-se o seu processo. Tudo se resume a constatar, em cada caso concreto, a realidade do êxito terapêutico. Ou seja: constata-se o fato da cura, embora permaneça obscuro o seu mecanismo.
De logo, é necessário estabelecer uma distinção entre cura paranormal e ação paranormal curativa.
A cura paranormal é o restabelecimento físico de uma pessoa, portadora de enfermidade orgânica devidamente diagnosticada e de remota possibilidade de êxito terapêutico à luz dos atuais conhecimentos da Medicina.
A ação paranormal curativa é todo procedimento aparentemente ineficaz – passes, preces, mentalizações etc. -, mas que resulta no restabelecimento orgânico de uma pessoa, pouco importando a natureza de sua enfermidade.
Por conseguinte, a cura de qualquer doença, mediante ação paranormal curativa, não é cura paranormal, conquanto essa sempre resulte daquela. As curas paranormais – ou curas milagrosas, no contexto religioso – são extremamente raras. Os leigos e os fanáticos a confundem com as curas decorrentes de uma ação paranormal curativa naquelas enfermidades que poderiam ser tratadas pelos recursos atuais da Medicina.
– E como se manifesta essa ação paranormal curativa?
– A ação paranormal curativa pode manifestar-se sob diversas modalidades. O médium curador se utiliza de passes, de preces, de irradiações mentais na presença do paciente ou mesmo à distância, ou, ainda, por uma ação física direta, como é o caso das cirurgias espirituais.
O médium pode agir por conta própria ou dizendo-se sob o controle de um espírito. Temos, no Recife, como exemplo desses dois casos, respectivamente, o “Irmão Macedo” e o médico Edson Queiroz.
Diga-se, de passagem, que a cura paranormal também ocorre sem a presença de médiuns, como no santuário de Lourdes, na França.
– Qual o procedimento para a investigação de curas atribuídas a um determinado médium?
– Inicialmente, é imprescindível a comprovação de que o paciente é portador de enfermidade orgânica devidamente diagnosticada e não apenas de meros distúrbios psicossomáticos, por mais severos que sejam.
Em caso afirmativo, o paciente será levado à presença do médium curador para tratamento espiritual.
Em seguida, findo o tratamento, o paciente se submeterá a novo exame médico para se constatar se houve ou não melhoria efetiva do seu estado orgânico ou restabelecimento total da saúde. Como é óbvio, a simples remoção dos sintomas não constitui cura, pois o efeito sugestivo pode produzir essa aparente sensação de bem-estar. A inalterabilidade do quadro clínico anterior importará na ineficácia do tratamento espiritual, pouco importando as costumeiras explicações do Além para justificar o fracasso.
– A ação paranormal através de cirurgia, realizada por um espírito “incorporado” pode oferecer algum perigo?
– A ação paranormal cirúrgica realizada por um médium em estado alterado de consciência, sob o comando de um hipotético espírito nele “incorporado”, não deixa de oferecer riscos. Quem age nessas circunstâncias, age inconscientemente e não se pode saber até se pode o inconsciente se comportará dentro dos parâmetros da segurança individual e coletiva.
Por outro lado, como sabem muito bem os espíritas, os médiuns e os espíritos não são infalíveis e, segundo ainda a doutrina kardecista, nenhum médium está a salvo da mistificação de um “espírito inferior”. Logo, seja sob o ponto de vista científico, seja sob o enfoque do Espiritismo, o médium cirurgião pode cometer erros e estes erros, por sua vez, são suscetíveis de causar prejuízos irremediáveis aos pacientes.
– Responda-me, não como parapsicólogo, mas como promotor público: pelo nosso Código Penal, o médium cirurgião que causar lesões físicas em seus pacientes é passível de punição?
– É evidente. Mesmo que o médium seja médico, ele age, ainda que em estado alterado de consciência, na condição de médico. Ou, em outras palavras: ele não deixa de ser médico, quando pratica uma ação médica, mesmo que não esteja consciente do que faz. A Medicina não está obrigada a aceitar a ação de um espírito, “incorporado” num médico, agindo no seu lugar e com o seu consentimento. O Código Penal não cogita da responsabilidade penal do espírito. E a própria parapsicologia ainda encara o problema da sobrevivência pessoal como respeitável hipótese de trabalho.
Logo, se o médium médico age inconscientemente, porque acredita estar sob o controle de um espírito, a sua fé particular não modifica a perspectiva médica e jurídica da questão. A sua ação inconsciente permitida se configura como negligência e imprudência. Portanto, se ocasionar lesão corporal ou mesmo a morte de um paciente, responderá por crime culposo.
– Então, esse é um óbice irremovível da cura paranormal? –
– Sob a modalidade de cirurgia – e também de prescrição medicamentosa -, sim. Com isso, não me estou opondo à atividade dos médiuns cirurgiões, mas alertando-os sobre os possíveis erros que possam cometer e das consequências que deles resultarão à luz do Código Penal. Assim, para preservar-se da possibilidade de erro, deve o médium ser supervisionado por um médico que, em última instância, decidirá acerca do tratamento espiritual recomendado pelo espírito “incorporado”, por mais respeitável que seja o nome do médico do Além. Se o médico da Terra, por qualquer motivo de ordem pessoal, concordar com o seu colega do Além, estará, sozinho, assumindo a responsabilidade do tratamento indicado.
Há modalidades, porém, de ação paranormal curativa que não contrariam as normas penais e nem as regras terapêuticas, sem a mínima possibilidade de risco para as pessoas enfermas. E os resultados são, não raro, mais surpreendentes da que os da cirurgia paranormal.
Trata-se, contudo, de uma questão que afinal, depende da consciência e da conveniência de cada médium em particular.
Diário de Pernambuco
24 de abril de 1983