Integração dos estados modificados de consciência (EMC) à realidade (*)

Jalmir Freire Brelaz de Castro

Culturalmente tendemos a acreditar que existe uma realidade objetiva independente de nós. Essa é a metafísica na qual se baseia o paradigma que norteia o pensamento ocidental, que por sua fez é baseado na física. É o que o físico Amit Goswami denominou de objetividade forte.

Tendemos ainda a acreditar que somente através do pensamento consciente podemos perceber “objetivamente” a dita realidade, e qualquer alteração dessa consciência implica em perda ou alteração do contato com a mesma.

No entanto, verifiquemos essas questões: 1) Será que percebemos realmente objetivamente, ou dependemos das nossas limitações de espécie – diferentes animais percebem de forma inteiramente diferente e de acordo com o aparelhamento sensorial do corpo, de história – o que nos influenciou ao longo da vida, da cultura, da idade, estados de atenção, e de inúmeros outros aspectos individuais e coletivos? 2) Há algum papel para a subjetividade naquilo que percebemos? A resposta a essas questões parece comprometer a relação ente objetividade forte e realidade.

Mas, causam perplexidade, os estados espontâneos em que a racionalidade aparece modificada da sua condição controle, como nos estados de fluxo (flow). Alguns esportistas como pilotos, corredores, dançarinos, músicos, passaram por esses estados, vejamos esses exemplos:

  1. A) O tecladista grego Yanni, que construiu carreira nos Estados Unidos, após voltar à sua terra natal, em apresentação no Teatro Herodes Atticus, aos pés da Acrópole, em Atenas, declarou que foi uma situação de extremo prazer, enquanto se deliciava ao expressar toda a sua habilidade, ao mesmo tempo tinha de estar alerta, e não esquecer que estava em performance no palco, perante uma plateia lotada e entusiasmada.
  2. B) O piloto de Fórmula 1Airton Sena, no Grande Prêmio do Japão, no qual atingiu performance extraordinária, declarou que em determinando momento ao dirigir em alta velocidade (onde qualquer erro pode ser fatal) teve a sensação de estar em estado maior de consciência, ao qual comparou como a experiência de estar com Deus.

Para efeito didático e delimitação, baseado em Tart, consideraremos estado de consciência como um padrão generalizado de funcionamento psicológico. A atenção parece desempenhar importante papel no direcionamento do estado de consciência, admitindo ou negando experiências específicas que entram na consciência.

Definiremos EMC como um estado mental subjetivamente reconhecido, por um indivíduo ou observador, diferente daquele do estado “normal”, alerto e desperto de indivíduo (Krippner, 1983). Não é definido por um conteúdo particular da consciência, ou por uma modificação fisiológica, mas em termos do seu padrão total (Tart, 1981). Representa um desvio do habitual estado de consciência do indivíduo saudável, como que constituindo uma realidade separada no tempo e espaço. Tem a duração de minutos ou horas, o que o diferencia da maioria das doenças psiquiátricas. No Estado Alterado de Consciência – EAC, diferentemente, há ima obnulação de consciência.

Os EMCs podem ser induzidos: A) através de drogas como a mescalina (utilizada por Aldous Huxley), o LSD (empregada por Stanislav Grof no início de sua carreira médica), a psilocibina, o DMT (dimetriltriptamina), e a substância ativa da marijuana e haxixe (9-THC); B) Redução de estímulos do meio, tais como, privação sensorial, estados hipnóticos, treinamento autógeno (auto-hipnótico), técnicas de meditação.

Outras formas, de ocorrência dos EMCs podem ser: hiperventilação, privação do sono, provocação de sentimentos fortes positivos (proteção, felicidade, condescendência, corrente de força, etc.) ou negativos (fome, frio, calor) e atividades como o jogging, alpinismo, mergulho ou esforço físico extremo (como nos treinamentos Zen, que ao passar o dia todo trabalhando ao final é mandado para outra extenuante tarefa como cortar lenha e aí obtém o insight).

Segundo Simões (1997), os diversos EMCs têm um conjunto de pontos comuns (conteúdos), independentemente de como são induzidos e da sua intensidade, é o que chama de dimensões principais: A) Auto-limitação Oceânica, caracterizado por uma dissolução de lógica, espaço, esquema corporal e limites, e que culmina numa vivência de fusão (unidade) com o universo, acompanhada de felicidade e paz. B) Auto-dissolução Angustiante, espécie de má viagem sob o efeito de alucinógenos, na qual a pessoa se ente torturada, separada, dividida, paralisada e perdida. C) Reestruturação Visionária, inclui pseudo-alucinações visuais, ilusões, sinestesias e alterações do significado do ambiente.

Os EMCs, conforme Simões (1996) podem ser diferenciados da consciência em vigília: A) EMC em vigília ordinária, quando há dominância do estado de ativação em relação ao de repouso, ênfase na atividade mental característica do hemisfério cerebral esquerdo; dominância na recepção de estímulos exteriores; pouca utilização da imaginação – domínio da atividade mental ou física, sobre a contemplativa. B) EMC em vigília diferenciada, não muito comum na cultura ocidental, no qual há um domínio do estado de repouso, com domínio da recepção de estímulos de fontes internas (corporais ou de conteúdos da memória); imaginação considerável, estado passivo de atividade mental – domínio da contemplação sobre a ação.

Grof (1983) considera que deve ser feita distinção entre EMCs e as experiências transpessoais, os EMCs incluíam essas últimas, mas certos tipos de EMCs não atingem o critério para ser catalogadas como transpessoais: as experiências de revivida vívida e complexa de uma memória infantil; vários jogos de fantasias e experiências simbólicas resultantes do uso de técnicas de fantasia afetivas induzidas; e as experiências primariamente estéticas, envolvendo visões de cores.

Bentov (1990) criou um critério para relacionar a quantidade e qualidade de consciência, através da fórmula: nível de consciência = tempo subjetivo/tempo objetivo.

Há enormes diferenças entre os estados de consciência de pessoas normais. Um estado modificado de consciência para uma pessoa pode ser o dia-a-dia para outra, dependendo inclusive da cultura. Goleman (1991) salientou que uma alteração duradoura da estrutura e dos processos de consciência não é mais um EMC e sim um traço modificado de consciência – EMC. Descamps (1997) salienta que o estado transpessoal, pelo fato de ser procurado e permanente, diferencia-se nitidamente das experiências transpessoais por serem estas breves e imprevistas. O conceito de normalidade também varia entre culturas e épocas.

O enfoque atual considera, de uma forma geral, os EMCs como estados estranhos, exóticos, ou até patológicos e indesejados, pois estão fora da cultura ocidental que valoriza a racionalidade. Podemos até aceitá-los, se observamos que podemos tirar dele algum proveito, dentro do conceito de utilidade comum a nossa cultura, exemplos não faltam: as diversas técnicas meditativas (e de hipnose) ocidentais e orientais para ajudar a aumentar a performance e reduzir o estresse, as artes marciais como a de origem chinesa tai chi chuan, a japonesa aikido, entre outras.

Como se vê, distintos e profundos são os detalhamentos para o entendimentos dos EMCs, e nossa reflexão final nessa volta-se ao aspecto cultural, no sentido de reconhecer que há muito por explorar (tais como, se os EMCs podem mediar as experiências psi) e reconhecer esses estados, como vantajosos e desejáveis, para que se possa  incorporar os EMCs na experiência comum do dia a dia, como estados integrados e integradores vivência humana, da realidade em que vivemos,  e não algo a parte, da nossa cultura competitiva.

                                               Bibliografia

BENTOV, I. A espreita do pêndulo cósmico, a mecânica da consciência. S. Paulo: Cultrix/Pensamento, 1990.

GOWAMI, Amit. A janela visionária. São Paulo: Cultrix, 2004.

GOLEMAN, D. Perspectivas em psicologia. In: Mística e Ciência. Petrópolis, Vozes ,1991.

GROF, Stalisnav. Royaumes de l´inconscient humanis, la psychologie dês profundeurs dévoilée para l´ experience LDS. Mônaco: Éditions du Rocher, 1983.

KRIPPNER, Stanley. Estados alterados de Consciência. In: O mais elevado estado de consciência. S. Paulo: Cultrix/Pensamento, 1993.

SIMÕES, M. Estados além da consciência. In: Aquém e além do cérebro – Actas do 1º Simpósio da Fundação Bial. Porto: Fundação Bial, 1997.

__________. Consciência e estados alterados de consciência. Psicologia 2/3, 1996.

TART, Charles.  Fundamentos científicos dos estados de consciência. In: Além do ego, dimensões transpessoais em psicologia. S. Paulo, Cultrix/Pensamento, 1995.

(*) Apresentado no III Encontro Psi: Implicações e Aplicações da Psi. Campus Universitário Bezerra de Menezes –  Faculdades Integradas “Espírita” – Curitiba – PR

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