Demarcação das áreas paranormal e mediúnica: seus aspectos nas religiões e na medicina (*) – Valter da Rosa Borges

Valter da Rosa Borges

 

 

É o Espiritismo uma ciência?

 

Para que possamos estabelecer as relações, no campo científico, entre o Espiritismo e a Parapsicologia, é necessário indagar, preliminarmente, se o Espiritismo é, na verdade, uma ciência.

 

Examinaremos, assim os textos da Codificação, onde Allan Kardec define o Espiritismo como ciência:

1)   “O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”. (1)

2)   “O Espiritismo é uma ciência de observação.”(2)

3)   “O Espiritismo e, antes de tudo, uma ciência, não cogita de questões dogmáticas.” (3)

4)   “Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião”. (4).

 

Allan Kardec, em resumo, define o Espiritismo como uma ciência experimental que tem por objeto a natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.

 

Entretanto, depois de afirmar o Espiritismo como ciência, Kardec o coloca à margem da ciência, ao declarar:

“A ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo”. (5)

 

E mais incisivamente:

“O Espiritismo não é da alçada da ciência.” (6).

 

É evidente que, ao dizer que “a ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo”, Kardec reconheceu, expressamente, que o Espiritismo não é, propriamente, uma ciência e que o domínio cognitivo da Doutrina Espírita está fora do alcance da “ciência, propriamente, dita”. Porém, não é de estranhar que Kardec tenha afirmado que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, pois, como ciência propriamente dita, ele se referia às ciências da natureza. Assim, o Espiritismo não era uma “ciência, propriamente dita” por não ser uma ciência da natureza.

 

Diz, ainda, Kardec:

“A ciência espírita compreende duas partes: experimental uma, relativa às manifestações em geral, filosófica outra, relativa às manifestações inteligentes.” (7).

 

Ou seja, Kardec, indevidamente, mistura ciência experimental com uma inexistente ciência filosófica. Talvez, em sua defesa, possamos aduzir que o que ele chama de ciência filosófica seja o que hoje é ciência psíquica por lidar com as “manifestações inteligentes”, eis que, em sua época, a psicologia ainda não afirmara a sua independência da filosofia da qual fazia parte.

 

Vamos, ainda, encontrar a concepção do Espiritismo, como ciência, em dois dos seus notáveis expoentes: Gabriel Delanne e Camilo Flammarion.

 

Diz Gabriel Delanne:

“O Espiritismo é uma ciência cujo fim e a demonstração experimental da existência da alma e sua imortalidade, por meio de  comunicação  com aqueles aos quais impropriamente se tem chamado  de  mortos.” (8).

 

E, mais adiante:

“O Espiritismo não é uma religião: não tem dogmas, nem mistérios, nem ritual. É uma ciência de experimentação, da qual emanam  conseqüências morais e filosóficas.” (9)

 

Somente glosaríamos Delanne na parte em que ele declara que o Espiritismo procura demonstrar a imortalidade da alma, porque a imortalidade jamais poderá ser matéria de conhecimento cientifico.  A imortalidade sempre será questão de fé, de crença religiosa, de concepção filosófica, porém, jamais, de conhecimento científico.  Talvez Delanne não atentou para a distinção entre sobrevivência e imortalidade.  A sobrevivência poderá ser matéria de investigação científica, porque é passível de verificação, como veremos adiante.   Porém, sobrevivência não importa em imortalidade, conquanto a recíproca seja o contrário.  Assim, é cientificamente possível provar que o homem sobrevive à morte física,  mas  nunca  se poderá demonstrar, cientificamente, que  ele  é  imortal.

 

Delanne, melhor do que Kardec, definiu o objeto do Espiritismo, sob o ponto de vista de sua viabilidade científica, ao declarar que o seu fim “é a demonstração experimental da existência da alma”, excluída pelas razões já expostas, o restante de sua definição. Corretamente, Delanne excluiu, do objeto do Espiritismo, o estudo da “natureza, origem e destino dos Espíritos”, dada a manifesta impossibilidade de sua verificação experimental.

 

Camilo Flammarion, por sua vez, asseverou:

“O Espiritismo não deve ser considerado como religião e, sim, como ciência a estudar””(10).

 

E ainda:

“O Espiritismo será científico ou não existirá” .

 

Enganou-se, porém, duplamente, o conceituado astrônomo: o Espiritismo não se tornou ciência, mas se desenvolveu, extraordinariamente, como religião.

 

Kardec, na verdade, não se mostra seguro quanto ao verdadeiro objeto do Espiritismo. Assim, após declarar que “o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”, afirma que “o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual”.(12). Ora, o princípio espiritual não é matéria de investigação científica e, por conseguinte, este seu “objeto especial” melhor se situa no contexto do conhecimento filosófico.

 

O aspecto religioso, no Espiritismo, é sem sombra de dúvida, o fundamental. E é o que proclama Kardec:

“Aplique o homem o Espiritismo em aperfeiçoar-se moralmente, eis o essencial.”(13).

 

E, de maneira mais veemente, confirma:

“O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal”(14). Logo, o Espiritismo é, na verdade, uma religião, pois “é o resultado de uma convicção pessoal”.

 

E esta conclusão não é de espantar, pois é o próprio Allan Kardec quem assevera:

“O Espiritismo tem por fim combater a incredulidade e suas funestas consequências, fornecendo provas patentes da existência da alma e da vida futura.”(15).

 

Assim, o objeto do Espiritismo passou a ser o combate à “incredulidade e suas funestas consequências”, ao invés de ser essa a consequência da prova da existência da alma.

 

Porém, mais uma vez negando o Espiritismo como ciência, diz Kardec:

“O Espiritismo era apenas uma simples doutrina filosófica: foi a Igreja quem lhe deu maiores proporções, apresentando-o como inimigo formidável; foi ela, enfim, que o proclamou religião.”(16).

 

Eis, portanto, uma nova perspectiva do problema: o Espiritismo, que era originariamente uma doutrina filosófica e não uma ciência, se transformou, por culpa da Igreja, em religião. Realmente, essa justificativa de Kardec é difícil de compreender.

 

De todo o exposto, somos forçados a reconhecer que o próprio Allan Kardec não soube definir com precisão o objeto do Espiritismo e, por conseguinte, a sua verdadeira natureza, o que resultou na tentativa conciliatória de apresentá-lo como uma síntese de ciência, filosofia e religião. Talvez fosse mais apropriado definir-se o Espiritismo como uma religião ou uma filosofia religiosa que, por sua estrutura fenomenológica, permite a investigação científica de uma parte de seus fenômenos.

 

O Espiritismo não foi reconhecido como ciência pela comunidade científica, prejudicado, certamente, em razão da formulação imprecisa de seu objeto, como também em virtude da manifesta insuficiência de seu procedimento metodológico.

 

Poderá o Espiritismo ser reconhecido, oficialmente, como ciência?

 

O Espiritismo, ao menos no Brasil, carece de sociedades cientificas, que se dediquem ao estudo e às pesquisas de seus fenômenos. Por isso, enquanto perdurar essa situação, o seu reconhecimento como ciência nos parece praticamente impossível.

 

Se o Espiritismo tivesse obtido o status de ciência e definido precisamente o seu objeto, talvez a sobre­vivência post-mortem do homem já se tivesse tornado matéria do conhecimento científico. E, assim, ele teria promovido a maior revolução científica de todos os tempos. Mas, infelizmente, tal não aconteceu. O Espiritismo jamais obteve o seu reconhecimento como ciência e, consequentemente, a questão da sobrevivência permaneceu confinada ao campo da filosofia e da religião.

 

Até o momento, portanto, utilizando a própria expressão de Kardec, “o Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal”.

 

Mas, poderá o Espiritismo se tornar uma ciência? E o que deve ser feito para se alcançar esse objetivo?

 

Inicialmente, vamos examinar o seu objeto e analisar a sua viabilidade de se tornar conhecimento cientifico.

 

Se, conforme Kardec, “o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”, seria necessário, preliminarmente, que se admitisse, a priori, a sobrevivência post-mortem do homem e a comunicação entre vivos e mortos. Por outro lado, a sobrevivência não importa comunicação mediúnica, embora a recíproca não seja verdadeira. Ou seja: provada a comunicação entre vivos e mortos, provada estaria a sobrevivência post mortem do homem.

 

Apenas ad argumentandum, partamos da premissa de que a comunicação entre vivos e mortos se tornou matéria do conhecimento científico.  Teremos, então, de examinar, primeiramente, se “a natureza, origem e destino dos Espíritos” são passíveis de investigação cientifica,   satisfazendo o requisito de testabilidade, que é a possibilidade de sua refutação empírica.  Assim, admitindo que, quando os Espíritos se comunicam conosco, eles falam a verdade, tudo o que possam nos dizer sobre a sua natureza, origem e destino e até mesmo sobre a vida  espiritual  não  é passível de verificação e, por conseguinte, essa parte do objeto do Espiritismo jamais se constituirá conhecimento científico.  Poderemos, tão somente, refletir sobre o que os pretensos Espíritos nos informam, acreditando ou não nessa ou naquela comunicação mediúnica.

 

Diz Kardec que o Espiritismo é uma ciência de observação, visto que os Espíritos se comunicam quando podem, como podem, e quando querem. Por isso, diz o Codificador, os fenômenos mediúnicos só podem ser observados “de passagem”, o que constitui uma condição altamente precária para a pesquisa científica.

 

O próprio Allan Kardec estava plenamente cônscio da extrema dificuldade da pesquisa dos fenômenos espíritas, reconhecendo que eles eram imprevisíveis, incontroláveis e tão somente observáveis. Por isso ele adverte:

“Nas ciências naturais, opera-se sobre a matéria bruta, que se manipula à vontade, tendo-se quase sempre a certeza de se poder regular os efeitos. No Espiritismo, temos que lidar com inteligências que gozam de liberdade e que a cada instante nos provam não estar submetidos aos nossos caprichos. Cumpre, pois, observar, aguardar os resultados e colhê-los à passagem?”(17)

 

Kardec enfatizou que “as comunicações do além túmulo são cercadas de mais dificuldades do que se pensa”(18) e que “a possibilidade e a exatidão das comunicações são um produto de causas que não dependem do médium nem do Espírito”.(19) Ressaltou, ainda que “os Espíritos só se comunicam quando querem ou podem”(20) e que a prova de sua identidade “é uma das grandes dificuldades do Espiritismo prático, sendo muitas vezes impossível verificá-la.”(21)

 

A Astronomia é também uma ciência de observação. Porém, é capaz de prever a ocorrência dos fenômenos que investiga. O mesmo, no entanto, não se dá com o Espiritismo que, sendo uma ciência de observação, não pode observar sempre os seus fenômenos ou sequer prevê-los, como o faz a Astronomia.

 

Por conseguinte, toda a informação prestada pelos Espíritos (admitindo-se a priori, tratar-se de uma autêntica comunicação mediúnica) e que verse sobre sua natureza, origem e destino ou, ainda, a respeito de sua vida espiritual, sempre se constituirá matéria de filosofia e de religião, de conteúdo necessariamente controvertido. Porque, como o próprio Kardec reconheceu, o que eles transmitem é produto de suas opiniões pessoais, o que explica as divergências e contradições das mensagens mediúnicas. Assim, diz Kardec, “cada um fala segundo suas idéias, e o que eles dizem é, muitas vezes, apenas a sua opinião pessoal; eis o motivo pelo qual não se deve crer cegamente em tudo o que dizem os Espíritos.”(22).

 

E, mais adiante:

“Há imprudência e leviandade em aceitar sem exame tudo o que vem dos Espíritos.”(23).

 

Essas declarações de Kardec colocam a última pá de terra sobre a questão: tudo se resume em aceitar ou em não aceitar o que dizem os Espíritos, admitindo-se, como premissa, de que são eles que se comunicam, visto que o que eles nos informam sobre sua natureza, origem e destino, assim como sobre a vida espiritual, jamais poderá ser verificado à luz do método científico. Impossível, por conseguinte, postular uma ciência ao Além, porque o Além não é observável, nem também verificável.

 

Outro espírita famoso, Alexandre Aksakof, já disso se apercebera e, por isso, observou que “as comunicações mediúnicas não nos podem dar noção alguma razoável acerca do mundo espiritual e dos seus habitantes; esse mundo transcendente é uma noção tão incomensurável para o mundo fenomenal quanto a ideia da quarta dimensão: não podemos – é preciso nos compenetrar dessa verdade – formar ideia alguma a seu respeito”.(24).

 

Em conclusão, essa parte do objeto do Espiritismo jamais será científico.

 

Agora, passemos à análise da parte final da definição de Kardec: as relações dos Espíritos com o mundo corporal.

 

Parece-nos óbvio que, para provar a sua sobrevivência, o pretenso Espírito comunicante deva fornecer as informações necessárias à sua identificação. E também que o médium ou qualquer das pessoas presentes à manifestação mediúnica não tenha, comprovadamente, conhecido a personalidade comunicante, pois no caso de um dos presentes tê-la conhecido, quando viva, o fenômeno poderá ser mais adequadamente explicado pela telepatia. Essa circunstância, embora não invalide a possibilidade de uma autêntica comunicação mediúnica, enfraquece, sobremaneira, a hipótese da manifestação do espírito.

 

Alexandre Aksakof, já no século passado, se advertiu, claramente dessa dificuldade, reconhecendo que “como a teoria espírita assenta, em definitivo, sobre essa questão de independência, segue-se daí que, enquanto essa independência não for provada de maneira positiva, os fenômenos mediúnicos deverão ser atribuídos à ação inconsciente – psíquica, física e plástica – do médium ou de outras pessoas vivas, quer estejam presentes, quer ausentes segundo o caso. É sobre essa base natural que o estudo científico, dos fatos mediúnicos deve começar, e deverá conservar-se aí até prova em contrário.“(25)

 

E, mais adiante:

“Eu já disse, repeti e repito ainda que o estudo da parte intelectual dos fenômenos mediúnicos nos coage a reconhecer, antes de tudo, que grande número desses fenômenos, dos mais frequentes, devem ser atribuídos à atividade inconsciente do próprio médium.”(26)

 

Ele reconheceu que “o fenômeno de materialização, sem um conteúdo intelectual suficiente, não pode bastar à prova pedida”.

 

Aksakof foi, assim, entre os estudiosos do Espiritismo, aquele que primeiro se deu conta da extrema dificuldade de se comprovar a realidade de uma comunicação mediúnica, visto que grande parte das manifestações espíritas poderia ser atribuída à ação do inconsciente do médium. Esta a razão pela qual ele denominou esses fenômenos de anímicos.

 

Do mesmo modo outro grande pesquisador espírita, Ernesto Bozzano, encampando o posicionamento de Aksakof, recomendou que “para resolver o grande problema da sobrevivência do espírito humano desencarnado, o melhor é estudar os poderes do espírito humano encarnado”.

 

O que se observa, porém, na quase totalidade das aparentes comunicações mediúnicas é, justamente, a melancólica pobreza de informações prestadas pela personalidade comunicante, não só sobre si mesma, mas a respeito de assuntos gerais sendo que, com desanimadora freqüência, aquilo que dizem não é suscetível de comprovação.

 

Além do mais, diz Allan Kardec, é praticamente impossível contar com a colaboração dos Espíritos superiores para fins de pesquisa, porque “nada mais antipático aos Espíritos do que as provas a que tentam sujeitá-los”, visto que “a elas jamais se prestarão os Espíritos Superiores”.(28). Como, então, fazer pesquisa científica sobre a sobrevivência, se os próprios Espíritos Superiores não querem colaborar? A não ser que essa apreciação de Kardec seja equivocada.

 

Todas as evidências levam à conclusão de que as comunicações mediúnicas são raríssimas. E isto não passou despercebido a Camilo Flammarion, que asseverou:

“A observação das coisas, tais como se dão, mostra-nos que em geral os mortos não voltam e que as manifestações do além túmulo são exceções.”(29).

 

Essa constatação levou Flammarion a adotar a atitude sensata de só admitir “a manifestação dos mortos, na impossibilidade de as explicar como de vivos”.(30).

 

Os guias espirituais dos médiuns, por sua vez, quase nunca fornecem provas concretas e convincentes de sua identidade, o que prejudica também a investigação da sobrevivência. E, se estes guias são amigos ou familiares falecidos do médium, de nada valem as informações que possam trazer sobre si mesmos, visto que tudo o que dizem através do medianeiro pode ser explicado pela criptomnésia.

 

É evidente que a comunicação entre vivos e mortos só pode ser estabelecida mediante a comprovação indubitável da identidade dos Espíritos comunicantes. Ora, essa comprovação é dificílima: o próprio Kardec o admitiu. E, entre algumas dessas dificuldades, ele apresenta as seguintes: a) só os Espíritos inferiores ou pouco evoluídos podem fazer essa prova; b) os Espíritos podem fraudar, fazendo-se passar por outra pessoa morta.

 

Do mesmo modo, Alexandre Aksakof reconheceu que “a questão da “identidade dos Espíritos” é o ponto difícil do Espiritismo” e porque “também os casos comprobatórios desse gênero são raríssimos”.(31).

 

E, de maneira mais enfática, declarou:

“Tenho adquirido por meios laboriosos a convicção de que o princípio espiritual sobrevive à dissolução do corpo, e pode, sob certas condições, manifestar-se de novo por um corpo humano acessível a influências desse gênero, mas a prova absoluta da identidade da individualidade que se manifesta importa numa impossibilidade. Devemos contentar-nos com uma prova relativa, com a possibilidade de admitir o fato. Eis uma verdade da qual nos devemos compenetrar bem.” (32).

 

O posicionamento de Aksakof, na concepção cientifica moderna, não tem mais razão de ser. A ciência é uma técnica de conhecimento e todo conhecimento científico é necessariamente provisório. Assim, não podemos exigir da ciência o que ela não nos pode dar. E a ciência não nos pode dar certeza, pois só o conhecimento religioso se diz certo, por ser dogmático. Tudo o que a ciência afirma é irremediavelmente provisório, sujeito a revisões parciais ou totais, apenas com confiabilidade probabilística. Somente a fé, subjetivamente, poderá suprir as lacunas do conhecimento científico. A fé é uma “gestalt” da realidade. E é isto que nos ensina Karl Popper: “o velho ideal científico da episteme do conhecimento absolutamente certo, demonstrável – mostrou não passar de um ídolo. A exigência de objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre. Pode ele, é claro, ser corroborado, mas toda corroboração é feita com referência a outros enunciados, por sua vez provisórios. Apenas em nossas experiências subjetivas de convicção, em nossa fé subjetiva, podemos estar “absolutamente certos”.”(33).

 

Não é, pois, de admirar que uma teoria da sobrevivência não possa ser provada absolutamente. Não existe prova absoluta em ciência. Se o conhecimento científico é provisório, seria um paradoxo a exigência da prova absoluta.

 

Tentaremos, neste trabalho, ressituar o problema da sobrevivência como teoria científica, propondo, para o Espiritismo, um modelo que satisfaça as exigências do método científico de nossa época. Poderemos, então, formular assim o postulado fundamental desta teoria:

 

O homem sobrevive à morte física, porque, em certas circunstâncias, quando vivo, é capaz de lembrar fatos comprováveis ou sugestivos de existências pretéritas, ou, quando morto, utilizando-se da mediunidade de uma pessoa viva, fornecer provas confiáveis da continuidade de sua consciência.

 

Examinemos, agora, os dois itens deste postulado:

 

  1. O homem, quando vivo, pode, em certas circunstâncias, lembrar fatos comprováveis ou suges­tivos de existências pretéritas.

 

A pesquisa da sobrevivência, nesta hipótese, se fundamenta nos seguintes casos de animismo:

  1. a) em fenômenos criptomnésicos, cujo conteúdo excede, em muito, a inteligência, os conhecimentos e as aptidões da pessoa que os apresenta,como, por exemplo, no fenômeno de xenoglossia;
  2. b) em fenômenos criptomnésicos de personificação, quando uma criança diz ter sido, em vida anterior, uma pessoa falecida, a qual não era conhecida por seus pais, familiares ou amigos da família. É o fenômeno conhecido por memória extracerebral.

 

Estes dois tipos de fenômenos constituem um campo promissor para a investigação científica da sobrevivência, sem necessidade de se apelar para a comunicação mediúnica. Em ambos os casos, as pessoas que passam por essas experiências apresentam conhecimentos e aptidões que não resultaram de aprendizado e nem podem ser explicados, razoavelmente, pela telepatia ou pela clarividência. Trata-se, portanto, de extraordinários fenômenos de criptomnésia, que podem servir de base à formulação da hipótese científica da reencarnação, porque passíveis comprovações experimentais.

 

Além do mais, certas terapias regressivas, notadamente a TVP (Terapia de Vidas Passadas), imaginada e utilizada pelo Dr. Nedherton, podem servir de valioso adjutório para a investigação da hipótese da reencarnação, desde que afastadas, em cada caso concreto, as possibilidades extremamente elevadas de uma dramatização do inconsciente, ou seja, da emergência espontânea de personalidades secundárias, simbolizando conflitos existenciais profundos e não adequadamente resolvidos.

 

  1. O morto, utilizando-se da mediunidade de uma pessoa viva, fornece provas confiáveis da conti­nuidade de sua consciência.

 

A pesquisa da sobrevivência, neste item, se alicerça em fenômenos mediúnicos, ou seja, aqueles que sugerem  a manifestação de um morto, desde que, razoavelmente, seja comprovada a sua identidade dentro dos seguintes  parâmetros :

  1. a) que a personalidade comunicante não seja conhecida do médium ou de qualquer dos assistentes, comprovadas, sem sombra de dúvidas, as informações que ela forneceu para a sua identificação;
  2. b) que a personalidade comunicante, embora conhecida de uma das pessoas presentes, forneça informações  que  só posteriormente sejam comprovadas.

 

A hipótese da comunicação mediúnica, assentada sobre essas bases, poderá ser aceita como científica, porque atende aos requisitos de verificabilidade e de falsificabilidade propostos por Karl Popper. De verificabilidade, porque os fatos referidos pela personalidades comunicante podem ser testados e comprovados. E de falsificabilidade, porque a hipótese da comunicação mediúnica pode comportar uma outra explicação que não a da manifestação de uma pessoa morta. Ou seja, essa comunicação pode ser explicada também pela telepatia.

 

Por outro lado, científica será também a atividade de se investigar, em cada caso concreto, se uma aparente manifestação mediúnica apresenta ou não a possibilidade de ser verídica.

 

Pode-se objetar que, não sendo previsível a manifestação do Espírito, a teoria espírita da sobrevivência não é científica, por lhe faltar o requisito da previsibilidade. Esta objeção só é procedente em relação aos casos espontâneos de manifestação mediúnica, mas não àqueles que ocorram nas sessões espíritas, onde se possa contar com a presença de médiuns poderosos. Nesta hipótese, é altíssima a probabilidade de ocorrência de fenômenos paranormais e mediúnicos, desde que, cuidadosamente, se estabeleça dis­tinção entre os mesmos.

 

Outra objeção pode ser feita: a manifestação mediúnica, por ser imprevisível, é, por consequência, incontrolável experimentalmente. Ora, se a controlabilidade do objeto de pesquisa fosse um requisito indispensável da metodologia científica, a Astronomia não seria uma ciência, visto que os astrônomos não podem intervir na mecânica celeste.

 

Aliás, já advertia A. Moles:

“O papel da ciência se acha modificado, não é mais o de prever a marcha do universo em sua minúcia, mas o de construir um modelo inteligível que sirva à apreensão da Natureza pelo homem.”(34)

 

Pode-se, finalmente, objetar que a constatação, pelo método indutivo, em todos os tempos e em todos os luga­res, é que nenhum homem escapou da morte física, o que legitima a conclusão genérica e a premissa dedutiva de que todos os homens são mortais.

 

É verdade que a teoria espírita da sobrevivência contraria o senso comum. O que percebemos é que todos os homens nascem, crescem, se reproduzem (às vezes), e morrem. É verdade, para os nossos sentidos, que o sol gira em torno da terra, que a lua aumenta e diminui de tamanho, que  a parte do bastão imerso na água fica torto, etc. Todavia, o conhecimento científico contraria, não raras vezes, o senso comum, demonstrando a falsidade de nossas percepções.

 

Acontece, porém, que um fenômeno insólito, uma vez comprovado como manifestação mediúnica, constitui forte evidência em favor da sobrevivência. André Dartigue informa que “às vezes, mesmo nas ciências experimentais, uma única experiência basta para estabelecer uma lei”.(35)

 

De maneira categórica, Karl Popper critica os que pensam que as teorias só são cientificas “se têm origem em observações, ou nos chamados “procedimentos indutivos”, visto que “poucas teorias físicas podem ser definidas deste modo”.(36). E adverte ainda que “o método real da ciência emprega conjeturas e salta para conclusões genéricas, às vezes depois de uma única observação”.(37)

 

Ora, a sobrevivência do homem é uma conjetura, e um número significativo de observações de casos, que sugerem a continuação da consciência após a morte, autoriza-nos a realizar este salto “para conclusões genéricas”.

 

Finalmente, Mario Bunge afirma que o psicólogo ou o filosofo, que se esquiva de responder à pergunta sobre o que é a mente, sob alegação de não se tratar de uma indagação cientifica, visto ser a alma inobservável, não está, na verdade, adotando uma atitude científica, “uma vez que a ciência teórica contemporânea ocupa-se predominantemente de inobserváveis, tais como as partículas elementares, os campos eletromagnéticos, a evolução geológica e biológica, a economia nacional, etc.”.(38).

 

Do mesmo modo, a teoria espírita da sobrevivência lida com entidades invisíveis, com inobserváveis, mas que se visibilizam por seus “rastros”, através de informações transmitidas por médiuns.

 

Por outro lado, a teoria espírita da sobrevivência também apresenta o requisito da fertilidade, porque possibilita a ampliação e o aprofundamento do conhecimento da realidade e enseja a postulação de novos problemas e questionamentos a respeito do homem e do universo.

 

De tudo o que foi dito até agora, poderemos chegar às seguintes conclusões:

  1. a) a sobrevivência não importa em comunicação mediúnica ou em reencarnação;
  2. b) a comunicação mediúnica importa, necessariamente, em sobrevivência, mas não em reencarnação;
  3. c) a reencarnação importa, necessariamente, em sobrevivência, mas não em comunicação mediúnica.

 

Por conseguinte, para que a sobrevivência não se constitua numa questão de fé, mas em conhecimento científico, ela pode ser investigada e demonstrada pelo Espiritismo, mediante duas hipóteses distintas:

  1. a) da comunicação mediúnica;
  2. b) da reencarnação.

 

Na primeira hipótese, os casos bem comprovados de comunicação mediúnica pela identificação indubitável da personalidade comunicante poderão permitir o “salto indutivo”, generalizando, por essa hipótese, como produzidos pelos Espíritos, os fenômenos insólitos, que não puderem ser razoavelmente atribuídos à ação paranormal de pessoas vivas .

 

Na segunda hipótese, os casos bem comprovados de memória extracerebral e de xenoglossia poderão fornecer os subsídios necessários para o estabelecimento de um conteúdo criptomnésico inato, possivelmente atribuíveis a existências pretéritas.

 

Tinha, portanto, razão Ernesto Bozzano, quando insistia na decisiva importância do animismo para a comprovação experimental do Espiritismo, asseverando, categoricamente, que “o Animismo prova o Espiritismo”.

 

E, logo adiante, afirma:

“O Espiritismo careceria de base, dado não existisse o Animismo”. (40).

 

Finalmente, conclui:

“O Animismo e o Espiritismo são complementares um do outro.”(41).

 

É a investigação da atividade do psiquismo inconsciente, portanto, que mais facilmente poderá conduzir o homem à constatação cientifica de sua sobrevivência.

 

De todo o exposto, poderemos chegar à conclusão de que o Espiritismo é viável de ser reconhecido como ciência, desde que altere a formulação do seu objeto, compatibilizando-o com as exigências da metodologia científica.

 

A título de sugestão, poderemos apresen­tar a seguinte definição para o Espiritismo:

 

O espiritismo, como ciência, tem por objeto o estudo e a pesquisa de fenômenos insólitos que sugerem a persistência post- mortem da personalidade humana e suas possíveis relações com o mundo material.

 

Assim, demarcado o território científico do Espiritismo, poderá ele estabelecer relações interdisciplinares com outras ciência, como a Parapsicologia e a Medicina, na investigação de fenômenos físicos, psíquicos e orgânicos, que não possam ser atribuídos à ação de fatores naturais e paranormais, mas, de maneira mais razoável, à atuação de um agente inteligente extracorpóreo. Adquirido o status de ciência, o Espiritismo poderá especular, de maneira mais profunda e sistemática, os intrincados problemas da religião e da filosofia, devassando, com maior ousadia e imaginação, os aspectos mais complexos da realidade.

 

BIBLIOGRAFIA

 

( 1)      Allan Kardec. O que é o Espiritismo. FEB. 14 ed.

( 2)      ___________ A Gênese. FEB. 10 ed.

( 3)      ___________ O que é o Espiritismo. FEB. 14 ed.

( 4)      ____________Obra citada.

( 5)      ____________O Livro dos Espíritos. FEB. 28 ed.

( 6)      ____________Obra citada.

( 7)      ____________Obra citada.

( 8)      Gabriel Delanne. O Fenômeno Espírita. FEB.

( 9)      _____________Obra citada.

(10)     Camilo Flammarion. As Casas Mal Assombradas. FEB.

(11)      _____________Obra citada.

(12)     Allan Kardec. A Gênese. FEB. 1ª  ed.

(13)     ____________O Livro dos Médiuns. FEB. 25s ed.

(14)      Allan Kardec.O Livro dos Espíritos. FEB. 28ed.

(15)     ____________ O que é o Espiritismo. FEB. 14 ed.

(16)     _____________Obra citada

(17)     _____________O Livro dos Médiuns. FEB. 25 ed.

(18)     _____________O que é o Espiritismo. FEB. 14 ed.

(19)     _____________Obra citada

(20)     _____________O que é o Espiritismo. FEB. 14 ed.

(21)     _____________Obra citada.

(22)     _____________Obra citada.

(23)     _____________Obra citada.

(24)     Alexandre Aksakof. Animismo e Espiritismo. FEB. pág. 598.

(25)     ________________Obra citada.

(26)     ________________Obra citada.

(27)     Ernesto Bozzano. Comunicações mediúnicas entre Vivos. Edicel.

(28)     Allan Kardec . O Livro dos Médiuns. FEB. 25 ed.

(29)     Camilo Flammarion. A Morte e seu Mistério. III, FEB..

(30)     _________________As Casas Mal-Assombradas. FEB.

(31)     Alexandre Aksakof. Animismo e Espiritismo. FEB. 2ª ed.

(32)      _______________  Obra citada.

(33)     Karl Popper. A Lógica da Pesquisa Científica. Cultrix, 1ª  ed.

(34)     Abraham A. Moles. A Criação Científica. Ed. Perspectiva S.A.

(35)     André Dartigues. O que é a Fenômenologia. Eldorado, la  ed.

(36)     Karl Popper. Conjecturas e Refutaçoes. Ed. Universidade de Bra-

sília. 4a ed.

(37)     ___________Obra citada.

(38)     Mario Bunge. Epistemologia. EDUSP, 1980.

(39)    Ernesto Bozzano. Animismo ou Espiritismo? FEB. 2ª   ed.

(40)    ______________ Obra citada.

(41)    ______________ Obra citada.

 

(*) Trabalho apresentado no I Simpósio Brasileiro de Parapsicologia, Medicina e Espiritismo. São Paulo, 26 de outubro de 1985.

 

 

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