Personificações subjetivas: aspectos psiquiátricos, parapsicológicos e transcendentais

Silvino Alves da Silva Neto

 

  1. Introdução

 

A questão das personalidades secundárias, ou seja, do fenômeno pelo qual um mesmo individuo evidencia uma ou mais personalidades além da principal, tem despertado a curiosidade de estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento, tais como filósofos, líderes religiosos, antropólogos, sociólogos, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e neuro­fisiologistas. O tema tem sido largamente explorado pelo cinema, a televisão e a literatura. Todos conhecem ou ouviram falar do famoso romance “O Médico e o Monstro”, onde o personagem principal durante o dia era o pacato médico Dr. Jeckyl e à noite se transformava no frio e cruel assassino Mr Hide.

Em vista de as personificações se constituírem em facilitadores das ocorrências de fenômenos paranormais, acabaram sendo objeto de estudo também dos parapsicólogos. Neste trabalho, será abordado o fenômeno das personificações do ponto de vista das ciências e da transcendentologia.

 

  1. Conceito de personalidade

 

Termo derivado da palavra latina “persona” que significa “máscara”. Na verdade, nenhuma das definições dadas por autores diversos são suficientemente abrangentes. A definição de Allport, entretanto, parece ser pertinente: “A personalidade é a organização dinâmica, no individuo, dos sistemas psicofísicos que determinam seu comportamento e pensamento característicos.”

 

III. Abordagem psiquiátrica das personificações

 

Em Psiquiatria, as personificações se incluem entre os chamados transtornos disso­ciativos. Estes se constituem em uma perda, psicologicamente induzida, da consciência, da identidade, da memória, das funções motoras ou sensoriais. Para o presente estudo, interessa apenas duas modalidades: o transtorno de personalidades múltiplas e o transtorno de transe e possessão.

No transtorno de personalidades múltiplas, o individuo evidencia duas ou mais per­sonalidades bem definidas, sendo que cada personalidade tem seu próprio nome, idade, sexo, memórias, comportamento e preferências. Já se constatou o caso de uma moça que evidenciava cerca de oitocentas personalidades diferentes!

Quando ocorre a forma comum, com duas personalidades, uma delas geralmente domina sobre a outra e ambas desconhecem a existência uma da outra.

Testes psicométricos revelaram diferenças de QI entre diferentes personalidades de um mesmo indivíduo, bem como exames oftalmológicos demonstraram haver variações na acuidade visual. Foi constatado que algumas personalidades chegam até a apresentar transtornos de humor associados, tais como depressão! Exames realizados através da Tomografia por Emissão de Pósitrons (TEP) e Fluxo Sangüíneo Cerebral Regional evidenciaram diferenças no funcionamento cerebral nas diversas personalidades verificadas em um mesmo individuo.

Estudos da curva de vida de indivíduos portadores do transtorno revelaram que, na sua maior parte, sofreram mal-tratos na infância, principalmente de natureza sexual.

O diagnóstico pode ser feito mediante entrevista com Amital ou hipnose. O trata­mento é feito com psicoterapia, tentando-se conciliar os afetos em conflito. O prognóstico é reservado.

No transtorno de transe e possessão, o individuo evidencia uma perda da identidade e da consciência do ambiente. O mesmo pode agir como se estivesse tomado por uma outra personalidade, espírito, divindade ou “força”.

Antigamente esse transtorno tomava o aspecto de “possessões demoníacas”. Hoje, são mais encontradiças as “possessões” pelo “Espírito Santo”, “obsessores”, “exus” e “pomba-giras” (o conteúdo varia com a época e a cultura). Esse transtorno também deriva de conflitos internos não resolvidos.

O transtorno de transe e possessão interessa aos parapsicólogos, visto como, em alguns casos, o individuo evidencia fenômenos paranormais, além dos sintomas psicológi­cos que caracterizam o processo. De acordo com diversos relatos, o “endemoniado” adivinhava os pecados das pessoas, levitava, movia objetos sem tocá-los, falava de fatos ocorridos à distância, se expressava em idiomas estrangeiros ou arcaicos, além de evidenciar outros fenômenos. Até o início do século passado, esses fenômenos eram tidos pela Igreja Católica como “comprovação” da influência demoníaca sobre as pessoas e condição sine qua non para que o bispo autorizasse o exorcismo.

Estudos da personalidade de indivíduos predispostos à dissociação revelaram que os mesmos apresentam imaturidade e instabilidade afetivas, tendências ao egocentrismo e à possessão, e sugestionabilidade.

Vale salientar que transtornos de transe podem surgir no curso de psicoses esqui­zofrênicas, ou em decorrência de algum tipo de injúria cerebral, tais como no traumatismo craniano, na epilepsia do lobo temporal ou nas intoxicações por substâncias psicoativas.

 

  1. Personificações subjetivas

 

As personalidades secundárias que se verificam em ambiente religioso não devem ser consideradas patológicas. Tais personificações, entretanto, têm a característica de facilitar a ocorrência de fenômenos paranormais, notadamente os psigâmicos. Daí a conceituação do parapsicólogo Valter da Rosa Borges de personificação subjetiva como “a modificação, espontânea ou provocada, da personalidade do agente psi, mediante a qual ele se comporta como se fosse outra pessoa, fictícia ou real, neste caso quase sempre já falecida, e, sob essa condição, apresenta fenômenos de psi-gama.”

De acordo com o mesmo autor, as personiflcações subjetivas apresentam as seguintes modalidades:

 

  1. a) Perspersonificação subjetiva espontânea de pessoa fictícia.
  2. b) Perspersonificação subjetiva provocada de pessoa fictícia.
  3. e) Perspersonificação subjetiva espontânea de pessoa real já falecida.
  4. d) Perspersonificação subjetiva provocada de pessoa real já
  5. e) Psicppsicografia personificativa Personificação em alfabeto Braille
  6. f) Personificação pelo alfabeto dos surdos-mudos
  7. g) Memória extracerebral

 

A memória extracerebral é uma modalidade especial de personificação subjetiva em que o indivíduo, geralmente uma criança de 2-8 anos, se comporta como se fosse uma outra pessoa, já falecida, afirmando ser a própria reencarnação daquela outra.

 

  1. Como surgem as personalidades secundárias

 

O psiquiatra C. G. Jung, em sua tese de doutorado “Sobre a Psicologia e Patologia dos Fenômenos chamados Ocultos” abordou o caso da Srta. S.W., uma médium que, entre outras personificações de menor importância, apresentava duas que se destacavam além da principal. Uma era uma adolescente de nome Ulrich von Gerbenstein, e a outra seria o suposto avô da médium que ela sequer conhecera, que só produzia “coisas religioso-pietistas” e “prescrições morais edificantes”, semelhantes aos sermões que ela ouvira de um piedoso sacerdote. Jung apercebeu-se de que “a variedade de nomes parecia inesgotável, mas a diferença entre as respectivas personalidades cedo se esgotou e ficou patente que todas as personalidades podiam ser classificadas em dois tipos: o sério-religioso e o alegre-brincalhâo. Na verdade tratava-se apenas de duas personalidades subconscientemente diversas que se manifestavam com diferentes nomes que, no entanto, tinham pouca importância”.

Continuando a análise do caso, Jung escreve: “Temos aqui personificados os principais caracteres do passado: de um lado, o educador coercitivo e pietista e, de outro, o total expansionismo de uma garota de quinze anos que, às vezes, ultrapassa os limites. Na própria paciente encontramos os dois traços numa mistura peculiar: às vezes é tímida, esquiva, excessivamente retraída e às vezes é tão expansiva que chega ao limite do permitido. Ela própria sente este contraste muitas vezes de modo doloroso. Isto nos dá a chave da origem das duas personalidades subconscientes. É óbvio que a paciente procura um meio termo entre esses extremos; esforça-se por reprimi-los e alcançar um estado mais ideal.”

De acordo com Jung, tais personalidades surgem como decorrência da dominação do consciente por complexos autônomos do inconsciente, quando estes se encontram im­buídos de uma certa quantidade de energia (psíquica) que lhes permite ultrapassar a barreira que separa o consciente do inconsciente.

Tanto Freud quanto Jung concordam em que o inconsciente não é uma tabula rasa, mas é formado por idéias e afetos que se aglomeram por afinidade, formando os chamados complexos. Diz-se que são autônomos pelo fato de evidenciarem certa inde­pendência com relação aos outros complexos e ao ego. São esses complexos que fornecem material para os sonhos, as fantasias e os sintomas neuróticos. Muitas vezes, fazem o indivíduo agir de forma contrária aos comandos conscientes, constituindo os fenômenos conhecidos como “atos falhos”. (Para Jung, além do Inconsciente Individual, formado pelos complexos, existe o Inconsciente Coletivo, formado pelos arquétipos).

Baseado em suas observações, Jung chegou à conclusão que os chamados “espíritos” são complexos autônomos do inconsciente, que por não terem associações di­retas com o ego se apresentam de forma projetiva.

 

  1. As personificações subjetivas à luz da Transcendentologia

 

Os adeptos das religiões mediúnicas acreditam que as personificações, no mais das vezes, são “espíritos”, ou as almas das pessoas falecidas, que dessa maneira encontram um meio de se comunicarem com os vivos. Quando não, constituem manifestações do es­pírito do próprio médium (fenômenos animistas).

Por outro lado, existem aqueles que adotam uma posição oposta, acreditando se­rem os fenômenos de natureza psicológica, isto se não se tratar de franca simulação, vi­sando ganhos secundários.

Afinal, com quem está a verdade? Talvez, como em outras áreas do conhecimento, a verdade esteja no meio, jamais nos extremos.

Uma coisa que podemos afirmar com certeza é que sabemos que uma grande parte das personificações não são espíritos ou Seres Transcendentais (ST), na conceituação de Rosa Borges. Isto por três motivos: primeiro, porque a análise do individuo, em vários casos, revela os motivos psicológicos que induzem à dissociação (ou simulação). Segundo, certas informações surpreendentes prestadas pelo agente psi podem ser explicadas como fe­nômenos paranormais, tais como a telepatia e a clarividência. Terceiro, porque as personalidades secundárias podem ser auto-induzidas ou induzidas por outra pessoa. Há relatos em que um assistente induz uma personalidade em um agente psi, e a “entidade” passa então a fazer parte do seu “acervo”. E quarto, porque já se verificou que alguns médiuns são capazes de “incorporar” a personalidade de uma pessoa viva, ou personificar um conflito in­consciente de outrem, esteja este presente ou em local distante.

Há fenômenos, entretanto, ainda de difícil explicação pelos critérios científicos vi­gentes. Qual a origem das informações criptomnésicas? Como explicar o surgimento de uma personificação subjetiva espontânea de pessoa real falecida, sendo esta desconhecida do médium e dos presentes? Como se justifica a “psicografia cruzada”, em que dois agentes psi que não se conhecem recebem, cada qual, uma metade de uma mensagem que se complementam no sentido? No caso da psicografia personificativa, é realmente possível um agente psi imitar a caligrafia e assinatura de um falecido, principalmente não o tendo conhecido, a ponto de serem legitimadas mediante exame grafoscópico? E o que dizer da memória extracerebral? Admitir a telepatia e a clarividência para explicar todos esses casos não seria “forçar demais a barra”?

De qualquer forma, a hipótese da sobrevivência para a explicação desses tipos de fenômenos permanece apenas como uma possibilidade, até mesmo porque esta não pode ser pesquisada cientificamente, pelo menos dentro dos paradigmas atuais. A questão, na verdade, deve ficar em aberto, pois com o avanço do conhecimento, principalmente na área da fisiologia cerebral e dos estudos da consciência, esses casos podem ter uma explicação muito diversa das hipóteses transcendentológicas.

 

VII.  Conclusão

 

Como vimos, o fenômeno das personificações é de grande complexidade e envolve aspectos psicológicos, sociológicos, neurofisiológicos, parapsicológicos e transcendentais.

Uma abordagem unilateral nos leva, no máximo, a entender um dos aspectos da questão. A personificação, entretanto, não parece se constituir em um fenômeno único, e sim, em um conjunto de fenômenos de diferentes naturezas que se manifestam de forma mais ou menos comum.

Em vista disso, deduz-se logicamente que seria errôneo pretender-se adotar uma atitude radical e unificada frente aos fenômenos de personificação. Saibamos usar o nosso bom-senso, o nosso conhecimento e a nossa intuição. Precisamos saber ser psicólogos, psiquiatras, parapsicólogos, filósofos e até mesmo místicos, na circunstância adequada. Agindo desta forma, com certeza, deixaremos de incorrer em sérios erros de julgamento e atitude, no trato com aqueles envolvidos no processo.

 

Bibliografia

 

  1. JUNG, C. G. Estudos psiquiátricos.(Psychgiatrische Studien) Tradução de Lúcia Ma­thilde Endlich Orth. Petrópolis. Vozes. 1994. Vol. 1.
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  3. QUEVEDO, Oscar González. Antes que os demônios voltem. 3ª Edição. São Paulo. Loyola. 1993
  4. KAPLAN, Harold I. e SADOCK, Benjamim J. Manual de Psiquiatria Clínica. (Pocket Handbook of Clinical Psychiatry) Tradução de Miguel Chalub. Rio de Janeiro. MEDSI. 1992.
  5. BORGES, Márcia Duarte da Rosa. Personificação: uma forma de expressão do fenô­meno paranormal. Tese apresentada ao IPPP em 1992.

 

 

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